sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Mnemosyne - II


.: Amnésia :.

O jovem náufrago segue vagando pela orla da praia, atravessa um acúmulo rochoso afim de conseguir uma vista do que há além da fechada baía. Pisa cautelosamente pelas partes mais secas e ásperas das pedras perigosamente cobertas de musgo, inclinadas em ângulos que facilitam ainda mais o tombo. Muitas sobrepostas e com pontas e quinas apontando para cima. Parece uma travessia boba, mas é justamente em subestimá-la que se encontra o perigo. Ele caminha preferindo pisar em algumas quinas doloridas para obter maior firmeza, algumas balançam perigosamente, mas ele atravessa e em um pulo sente a maciez da areia quente.
Agora tendo uma vista melhor da continuação da praia fica impressionado  com a sua extensão, terminando em uma curva muito ao longe que provavelmente levará a mais quilômetros de areia e mar.

Ele continua andando pela orla a procura de algum sinal de civilização enquanto observa a espessa mata fechada e sombria. Curiosamente não há sinal algum de vida, não percebe a presença de um espécime sequer, nem mesmo pequenos insetos, nem sequer pequenas lembranças. - A selva se fecha para se proteger, do que me protejo tentando esquecer? - Seus pensamentos continuam anestesiados e nada faz a não ser trilhar o caminho em busca de respostas. Sua busca por algum sinal de civilização parece não trazer resultado algum, horas passam e nada encontra a não ser perguntas. Adentrar a mata não parece ser a melhor escolha, pois seria muito mais fácil de se perder e não sabe que criaturas pode encontrar em sua exploração. A mata começa um pouco espaçada pela área do mangue com um solo salino e barrento, com porções de raízes pontudas saindo do solo lodoso, mas logo à frente a concentração de arvores vai aumentando, assim como a variedade. A mata se torna tão espessa o sol parece não chegar no solo criando um umbral vegetativo e emaranhado. Está escurecendo e a ideia de explorar a mata se torna cada vez mais perigosa. O viajante decide achar um lugar para dormir e pela manhã seguir viagem pela selva. As ondas vêm e voltam em um ritmo hipnótico, o sol começa a morrer, decaindo para trás da serra. A seda negra da noite pontuada por estrelas começa cobrir os céus e com ela vem o frio úmido do litoral. Já se faz visível o brilho pálido de Selene, se expondo minimamente com uma fina curva, é lua minguante, o que torna a maré mais calma, e agora está recuando aos poucos.

Sentindo-se cansado como se tivesse caminhado por um labirinto enorme o jovem cambaleando se encosta a uma rocha ereta e dorme sentado com seus cabelos cobrindo lhe o rosto dando a ele um ar tenebroso. Deixa-se levar pelo delicioso som do quebrar das ondas, mas de forma paradoxal este som é engolido pelo silêncio selvagem, como se algo estivesse para acontecer. O sumiço do último raio de sol traz a tona centenas de diferentes sons, de toda sorte de criaturas a espera do viajante adentrar a selva. Aos poucos ele se deixa levar por Morpheus e fecha os olhos tombando seu rosto para frente.

O cabelo desliza pelos ombros e deixa a mostra suas orelhas com pontas discretas semelhantes a dos elfos. Suas roupas o protegerão da brisa litorânea. Está vestido com uma túnica leve enrolada na transversal de cores azuladas e ornamentos ondulados que demonstram um capricho digno dos nobres, preso por um longo pano enrolado que lhe cobre o abdome. Um outro tecido pende da cintura para baixo fazendo um arco cobrindo uma das coxas sendo cruzado por uma corrente de largos aros grossos de prata presos apenas de um lado da cintura pendendo do lado oposto do tecido. Veste uma calça branca solta que chega até os joelhos e é presa por faixas que se enrolam até os calcanhares. Faixas enrolam também seus antebraços e mãos. Por cima de tudo para se abrigar do frio está enrolado em uma manta branca comprida o suficiente para cobrir boa parte de seu corpo enrolada ao modo grego. E um pequeno objeto brilhante se destaca pendendo de seu pescoço preso por um cordão, um orbe azul translúcido, mas que parece estar mudando o tempo todo em seu interior.

Recolhido em sono profundo passava uma aura obscura, se misturando ao clima noturno e se tornando parte da escuridão. Apesar de normalmente destoante no meio da areia límpida conseguia se mesclar e passar despercebido a qualquer um que olhasse. Quando parecia que seus sonhos o levariam a alguma lembrança útil algo o chama a atenção. A maré por algum motivo curioso estava avançando mais rápido que o normal como se pretendesse engoli-lo. O jovem se levanta, nem se lembra de ter dormido, mas já não está mais com sono. Aparentemente alguma coisa o fez decidir por atravessar a selva durante a noite mesmo. Seus olhos parecem firmes e determinados mesmo sem saber o porquê, simplesmente crê que o fluxo o leva a esta situação. Toda aquela aura obscura se dissipa e ele volta a passar um ar de serenidade e pureza. -Esta noite não poderei dormir, terei de entrar na mata ou serei devorado pelo mar- Pensa obstinado e assim o faz.

O ambiente selvagem é escuro absoluto adentrando apenas algumas brechas de luz azul-esverdeada proveniente da mistura da luz da lua e da camada de finas folhas nas copas das árvores. O ar está pesado, mal pode ver por onde anda, mas isso não o impede de continuar, muito mais do que a razão ele está seguindo a intuição. Afastando alguns galhos ele para repentinamente se atentando ao que há a seu redor e ouve passos lentos, medidos, que entregam se tratar de um animal a espreita. Ele está sendo observado, então decide correr. Galhos chicoteiam sua pele e pequenos seres se afastam ao ouvir seus passos. Não sabe se teme ser ferido ou ferir algo, apenas deseja evitar o conflito. Seu coração dispara e percebe que o embate já está traçado no momento em que penetrou na vegetação. Algo dentro de si sente que finalmente se colocou na situação que desejava, como se o que desejasse fosse combate. Algo que não era ele, uma assombração interna, um sussurro. Eis que no decorrer da corrida corta o pé em uma pedra pontiaguda e sente uma sensação estranha, a aura obscura começa lentamente a contornar seu corpo como um abraço líquido. Desatento tropeça e rola morro abaixo e sua percepção já começa a ficar conturbada. Levanta-se do chão confuso olhando para os lados, já não consegue pensar claramente e enquanto sua mente cospe lembranças seus sentidos piscam até não controlar mais seu corpo. Sente que algo maior o conduz, mas ainda assiste a tudo. O estalar de um galho denuncia a posição da fera, em um reflexo ele se vira na direção do barulho agarrando uma galho firme no solo sujo cheio de folhas mortas. Em um salto o grande felino avança contra o aturdido viajante. O que se vê em seguida é uma onça trespassada por uma lança improvisada caindo para o lado.

O jovem se levanta desajeitadamente e abrindo os braços expondo o peito com voracidade olha para o céu de olhos arregalados dando um grito mudo, escancarando a boca e soltando todo ar sem fazer som. Enquanto uma tempestade de pensamentos lhe vem à mente de forma difusa e elétrica uma palavra lhe salta à mente antes de desfalecer: Leviatã!



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Mnemosyne


.: Despertar :.

O sol está nascendo iluminando a fria manhã de um dia qualquer, em uma praia deserta um ser é lançado à areia, jogado feito um anjo caído. O mar parece calmo, subindo o nível apenas para deixar o estranho visitante.
Ele parece despertar de um sono profundo, abre os olhos cansadamente com a mente confusa retomando o movimento do corpo. Começa a se dar conta de onde está e que existe fisicamente, ainda não se mexe plenamente, mas as dores em seus membros não lhe deixam pensar direito. É a ferrugem do tempo, pensa ele. Tempo esse que não parece se expressar em sua aparência jovial.

Ele se levanta lentamente, ouvindo o vento deslizar sobre seu corpo sacudindo suas vestes e seus longos e alvos cabelos. O náufrago se mantém quieto prestando atenção aos sons à sua volta e nada encontra se não o quebrar das ondas. O cenário que o cerca é uma densa mata virgem, com alguns coqueiros espalhados mais perto da areia. A orla é de uma areia branca em forma de um "c" com penhascos criando uma proteção natural para a região com grandes rochas indo até o arrecife. A paisagem parece congelada no tempo, intocada, inanimada, o que desperta sua curiosidade.

O dia está claro com pouquíssimas nuvens bem altas esparramadas como pinceladas de tinta aguada feitas com rápidos movimentos. Atlas parece afastar Uranos o máximo que pode de Gaia. A abóbada celeste parece se misturar com o oceano no longínquo horizonte, dando a sensação de que não há separação entre céu e mar. Não é a toa que Zeus e Poseidon são irmãos. Por enquanto parecem em paz, até demais, como silentes e sonolentos seres recostados um no outro.
A calmaria parece incomodar o jovem, que revela em sua face uma profunda concentração. Compenetrado tenta lembrar-se de seu passado, mas apenas relâmpagos de imagens distorcidas lhe vem à mente.
Sua mente estava como a praia, tranquila, porém vazia e confusa, perdida no tempo.

Ele começa a se indagar de como foi parar  ali, pois não vira pegadas na areia e sequer um barco ancorado. Talvez seu barco tenha afundado. Perdido em suas reflexões para por um segundo, limpa e mente e percebe que sequer sabe seu nome. Não tem lembrança alguma de seu passado. Sem memórias de antes de acordar, foi como se tivesse acabado de nascer.



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